quinta-feira, maio 13

Viva São Benedito neste 13 de Maio!

Departamento de História e Genealogia, Seção de Celebrações Especiais


Hoje é 13 maio.

Comemoramos a assinatura da Lei Áurea, que finalmente libertou-nos, a nós brancos em geral, e aos senhores de escravos em particular, dos encargos que a negrada representava.

Ora viva!

O mérito da data é meramente simbólico, na medida em que nos impõe a idéia de igualdade entre os homens de todas as cores – e, diria eu, de todas as classes. Uma idéia mais difícil de assimilar, mas quem sabe, com o tempo...

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João Mendes de Almeida, meu bisavô, morava na hoje denominada Praça João Mendes, no velho centro da capital da província de São Paulo, no prédio onde hoje é a Padaria e Confeitaria Santa Teresa.

Batalhador, aguerrido, arrogante, certo de suas certezas, enfrentou autoridades arbitrárias desde jovem e só se formou em Direito mediante laborioso processo contra acusações falsas que lhe faziam em Pernambuco.
Falava Francês, Espanhol, Tupi Guarani, Latim e Grego, e publicou ensaios e livros, clássicos de sua seara profissional, e a respeito da toponímia nativa da província de São Paulo.

Foi um ilustre e influente político, amigo de Dom Pedro II e toda a família imperial. Era um católico fervoroso e militante conservador, benfeitor da Igreja de São Gonçalo, onde assistia suas missas.

E bota conservador nisso! Brilhante jornalista, só pelos títulos dos jornais que fundou e dirigiu dá para ter uma ideia: “A Lei”, “A Ordem”, “A Opinião Pública Conservadora”, “A Sentinela”, “A Sentinela Monarquista”.

Suas filhas solteiras só saíam de casa cobertas com véu negro para, em grupo, andarem, com modéstia e vagar, os trinta metros que separavam a sua casa da Igreja de São Gonçalo, apenas para assistir à missa de domingo. Talvez por isso várias terem morrido solteiras.

Evidentemente, com os filhos-homens o tratamento era outro. Ousados e livres, deviam sair pelo mundo arrostando tempestades e dificuldades, com o patriarca fizera. João Mendes Jr., meu tio-avô, foi o filho comportado e de carreira ortodoxa bem-sucedida (o Fórum Central de São é nomeado em sua homenagem), e Ângelo Mendes de Almeida, meu avô, o boêmio rebelde, como seus descendentes (uma espécie da Carlito Maia de sua geração), incorporaram a vocação rebelde do velho Patriarca.

O Velho Patriarca chutaria o pau da barraca em 16 de novembro de 1898, considerando que a quartelada republicana de 15 de novembro era irreversível.

Mas o quê tem isso a ver com o 13 de maio e a negrada liberta?

Seguinte.

João Mendes acreditava na Bíblia.

Acreditava que Deus havia criado todos os homens iguais e ao mesmo tempo, no início dos tempos e no Jardim do Éden, qualquer que fosse o valor simbólico ou literal que se emprestasse a esse mito. Não aceitava a instituição da escravidão ou nada que se lhe assemelhasse.

Hoje parece-nos difícil assimilar um fato: o de que entre os conservadores havia uma corrente abolicionista, que tinha planos de libertar os escravos, dando-lhes porções de terras que garantissem a sua subsistência e a de seus descendentes. Tais idéias começaram a surgir em 1808 e evoluíram durante o período em que João Mendes de Almeida tinha influência ativa na política nacional.

O que esses conservadores propugnavam era o que hoje chamaríamos de uma “reforma agrária” radical.

Os assim chamados Liberais eram contra. Para eles, tais imposições restringiam o sagrado direito de propriedade. Decretados de modo imperial a partir do Governo Central, eram atentados à Liberdade (lembre-se: negros eram propriedade, ativos dos senhores locais e fazendeiros, não eram cidadãos ou homens reconhecidos como sujeitos ativos de direitos).

Donde, a ideia de que qualquer direito dado a negros era um atentado ao direito de propriedade e ao livre comércio, contra a ideologia Liberal.

Os liberais em geral e os fazendeiros em particular viam com maus olhos o fortalecimento do Poder Central e o fato de que, legalmente, o Imperador poderia nomear Presidentes de províncias. Diziam que a Democracia exigiria que esses presidentes fossem eleitos por eles, que detinham o direito de votar (o qual, evidentemente, não era universal).

João Mendes tinha uma visão de Democracia Liberal com um monarca iluminado mais passivo do que ativo, e um parlamentarismo à moda inglesa. Com isso, seria implantado no Brasil um regime moderno (para a época) e aberto às mudanças democráticas voltadas aos interesses da Nação como um todo e não apenas a interesses provincianos particulares.

Ora, tudo isso estava coerente com a ideologia de João Mendes: era necessário abolir a escravidão e obrigar a classe escravocrata a financiar a inserção dos negros na então chamada sociedade brasileira.Para ele, a vitória do Federalismo Republicano (que acabou acontecendo) seria uma volta ao feudalismo.

João Mendes de Almeida punha a funcionar suas idéias na sua vida diária. Se não podia mudar a lei da noite para o dia, impunha seu prestígio e influência política sobre as autoridades locais.

Negros fugidos, todos sabemos, são trânsfugas criminosos – algo semelhante a ladrões, pois estão se subtraindo ao direito legítimo de propriedade do senhor que por eles pagou. Então o senhor deles botava a Polícia no seu encalço.

Essa história de Capitães-do-Mato é coisa de áreas rurais, de possíveis quilombos, coisa superada de antigamente, onde não havia Lei e Ordem. Mas, numa capital mais civilizada como São Paulo, era a Polícia mesmo que perseguia, batia, prendia e devolvia o escravo fugido ao seu senhor.

A não ser que ele chegasse à Praça e conseguisse botar um pé na soleira da entrada da casa do Dr. João Mendes. Aí ninguém mais arriscava a encostar a mão nele ou nela. E João sempre acolhia o fugitivo e o adotava, alimentava e vestia.

Só que então ficava difícil a ele sair da casa. Os homens ainda conseguiam, na calada da noite, escapar da Polícia. Mas as mulheres não sabiam aonde ir. Elas iam ficando, dormindo, comendo e bebendo na casa do João, e participando dos serviços domésticos.

Os negros acolhidos moravam nos fundos da casa e tinham uma verdadeira comunidade, faziam suas festas e recebiam amigos. Mas, particularmente para as mulheres, seria arriscado saírem para andar pela rua. João lhes fazia um pequeno pecúlio. A comunidade fazia parte da casa patriarcal e ia aumentando, assim como a família do Sinhô: quando um filho casava, geralmente trazia a esposa para o casarão. E a família também aumentava com as negras: eram já duas ou três gerações ao final do século.

As filhas negras continuavam lá e acabavam adotadas como parte da família. Eu conheci várias, que, gerações depois, continuavam ligadas aos Mendes de Almeida como sendo sua própria família. Aliás, incidentalmente, uma delas foi minha mãe-preta. Vocês não imaginam como é importante ter uma mãe-preta, mas isso é outra história.

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Em 1871 o gabinete conservador do governo Rio Branco fez aprovar a Lei do Ventre Livre, também chamada de Lei Rio Branco. O principal redator dessa lei foi João Mendes de Almeida.

Teoricamente, a Lei do Ventre Livre acabaria com a escravidão em uma geração, uma vez que, dadas as condições políticas da época, não seria possível acabar com ela de imediato, numa pancada.

Dizia-se: quem paga o prejuízo do confisco desse ativo que são os escravos? Isso vai ser a ruína da Nação e da Agricultura. Ontem, ativo acrescido às rendas e cabedais dos senhores. E, depois, o quê? Gente viva? Cidadãos? Parte da população economicamente ativa (o termo é de hoje, mas a idéia não)?

A Lei do Ventre Livre, tal como negociada por João Mendes, acabou sendo uma espécie de Consolidação das Leis do Trabalho “avant la lettre”. Dizia que os nascidos de escravas eram livres, mas não podiam ser separados da mãe. Que o dono da mãe seria responsável pelo seu bem-estar e educação.

Se, de um lado, eles ficavam obrigados a prestar serviços ao senhor de sua mãe até a sua maioridade, como compensação das despesas de sua criação, por outro lado tinham direito a bom tratamento, educação e encaminhamento a um emprego quando chegassem à maioridade, tudo isso por conta do senhor de sua mãe.

 E que este último ficaria sujeito à fiscalização do Estado: se maltratasse ou não cuidasse dos filhos de suas escravas, seria multado e perderia todos os direitos sobre eles.

Neste caso, o Estado os adotaria e tornar-se-ia responsável pela sua educação, bem-estar e emprego. E jamais poderiam ser separados da mãe, que significava a perda da escrava. Se esta fosse vendida, o comprador ficaria obrigado a todos esses deveres com relação à sua prole. E se uma filha nascida livre de escrava procriasse, a obrigação do senhor continuava com relação à neta, enquanto mantivesse a escrava como sua propriedade.

E mais: se o filho ou a mãe conseguisse pagar uma indenização, o senhor seria obrigado a libertar a mãe e o filho. E lei ainda ainda instituía uma cota estadual de emancipação, que haveria de facilitar a libertação de escravos e de seus filhos, financiada por loterias, isenções de impostos e outros estímulos.

Em suma, uma lei extensa que regulava os direitos dos escravos, tendo conseguido saltar por sobre as racionalizações então correntes contra a sua emancipação.

Foi uma negociação difícil, que, ao cabo, terminou por calar a oposição, pois evitou uma confrontação imediata. Mas era o verdadeiro golpe de morte no instituto da escravidão.

A partir dessa lei, a escravidão não compensaria mais. Era mais caro ter um escravo do que empregá-lo. Foi aí que começou a libertação.

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Mas levou algum tempo até a classe provinciana dos senhores e fazendeiros se darem conta disso. Ou talvez não. Talvez eles apenas tenham espremido o limão até a última gota de suco – ou, em se tratando de gente, até a última gota de sangue.

Esse momento chegou em 1888: a Lei Áurea.

A Lei Áurea acabou com todos os encargos e responsabilidades da sociedade branca e mestiça. Tem apenas dois artigos lacônicos que eliminam todos os problemas causados pela escravidão:

Artigo 1.o: É declarada extincta desde esta data a escravidão no Brazil.


Artigo 2.o: Revogam-se as disposições em contrário.

Ou seja, estavam revogadas todas as obrigações que os senhores de escravos poderiam ter assumido anteriormente.

Diz aí para os negros que eles estão livres e que podem sair no mato sem ter para onde ir, ou ficar na fazenda trabalhando pela comida e pagando aluguel.

Solta esse pessoal pelo Brazil afora, que o Brazil é grande e tem muita onça querendo comer negro.

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E então aqui estamos nós, aqui, no Brasil de 2010, discutindo se o MST está certo ou errado, ou se a política do Meirelles é de esquerda ou de direita, ou apenasmente uma política responsável, desde o ponto-de-vista global financeiro.


Aos meus amigos negros, brancos e mulatos, entrego meu coração nesta data.

Ora viva, que Oxalá nos proteja!


PMA 13/05/10



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