segunda-feira, abril 5

Marketing hoje e ontem



Departamento de Recordações

Ah, a gente fala do Passado como ultrapassado, do Presente como evolução e do Futuro como esperança.
Preconceitos do Século XIX. Tanto Marx como Alan Kardec deslumbraram-se com a descoberta da evolução por Darwin. Tomaram-na como uma lei física, determinista, inevitável. Donde, o tom dogmático e fatalista no estilo tanto de um, como do outro: a Ciência não dá margem a dúvidas quanto à Evolução e ao Progresso.

Em pleno século XXI, ainda pensamos, muitos de nós, com a cabeça do Século das Luzes, o Dezenove. Então, acontece que as decadências profissional e ética podem evoluir (involuir?) para pior e são vistas como Progresso. O Hoje é melhor do que o Ontem. Por definição (ou seria por convenção?).

Pois é. Esqueceram-se da China, o império mais desenvolvido do mundo, cultural e tecnologicamente, durante milênios. E que acabou sendo conquistada e devastada pelos bárbaros europeus, após uma decadência arrogante secular. No caso da China, foi uma decisão imperial, consciente e deliberada: não queremos evoluir, não queremos progresso, não queremos mudar as artes e técnicas que os antigos nos legaram, queremos merecer a herança dos nossos antepassados e cultivar a tradição.

Não digam depois que sou saudosista. Simplesmente acho que, ao contrário do determinismo mecanicista em voga no Século XIX, a humanidade ainda tem latitude para decidir seus destinos, dentro das contingências da História. Os homens podem decidir seguir em frente ou parar ou destruir tudo a seu redor.


Em 1957 eu era estudante de Direito, mas tentava ganhar a vida como funcionário público, jornalista (revisor da Folha nas madrugadas) e free-lacer publicitário: redigi textos, desenhei rótulos de marcas de álcool e cachaça, folhetos de country-club, e ainda fazia artes finais e produção gráfica (você já ouviu falar em paste-up man? Pois é, eu fazia isso).  Mas recebi muitos “canos”: minhas produções eram publicadas, mas não me pagavam.

Decidi então tentar um emprego como Chefe de Pessoal, em resposta a um anúncio de jornal. Eu era um bom aluno de Legislação Trabalhista, ou Direito Social, como preferia nosso lente, Prof. Cesarino Júnior.
Fiz uma bateria de testes numa empresa especializada e mandaram os resultados para a Lever. De lá, reenviaram-nos ao Rodolfo Lima Martensen, Gerente-Geral da Lintas, house-agency da Irmãos Lever.

Diagnóstico do teste: personalidade criativa e promissora, mas verde para chefiar pessoal na fábrica da Vila Anastácio. Hoje eu reconheço que, quanto a esta última parte, eles estavam certos.
O Lima resolveu apostar em mim. Admitiu-me como Auxiliar de Redação.

Eu era jovem, embora já casado e com filhos. Mas tinha pretensões intelectuais (que ainda tenho, espero melhorar com o tempo) e a arrogância própria da idade (que o tempo desbastou, essa não tenho mais). De modo que, ao entrar pela primeira vez no prédio da Lever, tive uma reação de desprezo e de humilhação por submeter-me àqueles burgueses hipócritas.

É que, na entrada do prédio, havia uma vitrine patrocinada pela Lever, com uma deslumbrante foto de uma atraente operária organizando a embalagem de sabonetes Lever na fábrica, ao lado uma igualmente atraente dona-de-casa terminando a lavagem de roupa. E o texto dizia, descaradamente:

“Para a Lever, a Dona-de-Casa é a pessoa mais importante do mundo”

Ora, ora. A dona-de-casa. Um bando de fofoqueiras que fritam bolinhos, ouvem novelas e estendem roupas. Nós sabemos que as empresas estão aí só para fazer lucro e explorar as donas-de-casa. Para eles, pessoa mais importante do mundo é o dono da empresa, o capitalista. Para nós, é o proletário.

Agora, vou fazer parte do conluio. Vou ser parte da elite que engana a todos. Mas nós conhecemos a verdade. Vou ser obrigado a enganar, se quiser ser aceito nesta confraria em que estou entrando, quarto e quinto andares. Então, criei coragem e tomei o elevador.

E aí virei publicitário e, depois, homem de Marketing. Convivi com pessoas que tinham seus defeitos e qualidades, mas cujo modelo me foi perfeito.

Tomemos, por exemplo, Rodolfo Lima Martensen. Aprendi muito com ele. Não só pelo que ele ensinou e pela disciplina que ele nos impunha, mas pela amizade e pelo seu exemplo. Ficamos amigos, principalmente anos depois que eu sai da Lintas e não era mais seu subordinado e discípulo.

Um dia ele me confidenciou:

“Você foi a maior decepção de minha vida.”

Ele apostara tudo na minha carreira criativa, inclusive seu prestígio pessoal junto ao Presidente da empresa, mas eu me demiti para seguir a carreira de pesquisador.

Lima foi minha primeira surpresa. Aquele homem imponente, de alta classe, refinado, inteligente e bem sucedido, executivo de multinacional, acreditava sinceramente que a dona-de-casa brasileira era a pessoa mais importante da vida dele. Não era hipocrisia. Ele reafirmava isso com convicção. Ele lamentava:

“O maior problema com os publicitários bem-sucedidos é que eles passam a ganhar mais, compram um carro” (isso era no comecinho da indústria automobilística no Brasil) “e não andam mais de ônibus”.

Conforme ele dizia, era a perda do último elo de convivência com o povão a que a publicidade se dirigia. E, a partir daí, os nossos homens de criação acabavam mais familiarizados com a última tendência de Madison Avenue do que com as breguices locais.

Prêmios. “Prêmios”, dizia ele, “eu não ambiciono conquistar. Eu quero só falar a linguagem brasileira e dizer o que interessa à nossa consumidora.”

Ou então tomemos Sir George Pollock, Diretor de Marketing da Lever. No meu tempo, ele já era idoso. Não sei o que fazia no Brasil como Diretor de Marketing, ele que poderia estar na Câmara dos Lordes, em Londres. 

Ele acreditava que a dona-de-casa é quem sustentava aquele gigante multinacional que era a Lever.

Ou John Peter Somerville, Gerente de Marketing, seu imediato subordinado e pesadelo do pessoal de criação. Nós, publicitários, acreditávamos no nosso poder mágico de convencimento criativo, mas ele sempre impunha aquela linguagem vulgar de dona-de-casa brasileira, pior do que a inglesa, mas não muito. Ambas iguais em seus anseios, de acordo com a época, lavando roupas, tentando agradar os maridos, gerando filhos.

Nós lutávamos contra essas imposições ditatoriais do Marketing, argumentando que o futuro estava conosco, como nos Estados Unidos e no resto do mundo, que o cinema iria cair de importância quando chegasse a televisão e que a campanha de “9 entre 10 estrelas de cinema preferem  Lever” devia ser abandonada por antecipação.

Somerville dizia que a realidade estava aqui mais perto e nós não víamos. Ele, inglês, que mal falava Português, estava certo. Ele achava que a dona-de-casa brasileira era o máximo.

E o Presidente: Clide Van den Bergh, sobrinho-neto de um dos fundadores da Unilever e, creio, provável herdeiro da Unilever, entre outros. Todos na empresa o reverenciavam, enquanto deteve o Poder. Ele acreditava no Marketing e achava, sinceramente, quase como um culto, que a dona-de-casa era a pessoa mais importante do mundo. Ele repetia essa frase como se fosse dele. Talvez fosse, não sei.

Ele tinha alguma ligação afetiva comigo e deu-se ao trabalho de me explicar, quando cheguei ao Brasil depois de um estágio na Europa em 1964, por quê a Lever apoiara o golpe militar de 64. Explicou:

“Eu amo este País.”

Acredito, do fundo do coração, que ele era sincero e que ele amava também todas as donas-de-casa do mundo, por mais primárias ou analfabetas que fossem. Sem elas, não existiríamos.

Naqueles tempos em que os grandes executivos identificavam-se com suas consumidoras, nós as chamávamos de “corny”. Como se falava em Nova York.

E o Paschoal Ricardo Neto, Gerente de Vendas, par do Somerville e subordinado de Sir George. Também “corny”. Batalhador de campo. Sabia falar com vendedores, donos de botequim analfabetos, diretores de multinacionais (em inglês) e donas-de-casa. A Lever dependia dele. Se vendia, tudo bem. Se não, estaríamos todos sofisticadamente estrepados.

Ele vendia.

Depois, foi promovido a Presidente e ainda, mais a tarde, encarregado do Hemisfério Sul da Unilever, incluindo a África do Sul, que era, na ocasião, um mercado importante.


Pois aprendi com todos eles uma lição que não mais esqueci: a dona-de-casa (ou o consumidor em geral) é a pessoa mais importante do mundo. Para todos nós do Marketing. Elas / eles estão muitos furos acima das manipulações megalomaníacas desse pessoal que acha que pode manipular mercados à vontade, impunemente.


Para as grandes empresas globais de hoje em dia, a dona-de-casa é uma obscura presença num elenco de stakeholders: acionistas, diretoria, funcionários, governos, comunidades perto da fábrica, fornecedores, etc.

 Para a consumidora, qualquer tele centro, que fale Português conforme o texto ou a gravação, serve.

E, para os acionistas, tapete vermelhos. Pois onde é que se faz o lucro?

Eles acham que é na Bolsa.

Um dia a casa cai. Não persiste a casa sem alicerce. Não existe fábrica sem fabricação. Nem produtos sem produção. Nem produção sem mão-de-obra. E nem consumidores sem assalariados ou remunerados de alguma forma.

Para nós, a dona-de-casa é a pessoa mais importante do mundo.



PMA, abril de 2009





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