Nem sempre a verdade está certa: às vezes a sabedoria convencional e o senso comum enganam
Hoje em dia parece não haver afirmação mais pejorativa do que dizer que Fulana é “uma Amélia”. Principalmente se você diz isso diante de mulheres e, em particular, de mulheres modernas e independentes.
Todos sabem de onde vem a expressão. O samba “Amélia” de Ataulfo Alves é um eterno sucesso e, digo de passagem, um de meus preferidos (aliás, o Ataulfo para mim é cult). Até hoje quase todos sabem cantar “Amélia” de cor.
Mas parece que ninguém prestou atenção no sentido da letra. Debalde Ataulfo, quando vivo, deu entrevistas em que afirmou que Amélia, “a mulher de verdade”, não é a mulher submissa e passiva, mas o modelo da mulher solidária. Diria eu, da mulher companheira e forte, que pode conviver com o parceiro de igual para igual.
Eu assisti a uma entrevista dele na TV em que a entrevistadora não conteve uma expressão sarcástica, quando ele disse isso. É claro que a entrevistadora era uma profissional moderna e independente.
A letra é assim:
Nunca vi fazer tanta exigência,
Nem fazer o que você me faz.
Você não tem a menor consciência,
Não vê que eu sou um pobre rapaz...
Você só pensa em luxo e riqueza.
Tudo o que você vê você quer!
Ai, meu Deus! que saudade da Amélia!
Aquilo, sim, é que era mulher!
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter que comer.
E, quando me via contrariado,
Dizia: “Meu bem, que se há de fazer?”
Amélia não tinha a menor vaidade,
Amélia é que era a mulher de verdade!
Existem três personagens nessa história: Eu (supostamente, o Ataulfo), Você (a atual companheira do Eu) e a Amélia (a antiga companheira do Eu).
Na primeira estrofe, o Eu se queixa de que Você não compreende que ele é pobre e não pode atender a todas as exigências de Você. Você vive pedindo coisas que ele não tem dinheiro para comprar.
Na segunda estrofe aprendemos que Você é uma mulher mimada, que espera receber do companheiro uma vida fácil de luxo e riqueza. Provavelmente Você fica em casa ranzinzando com ele em vez de ir trabalhar a ajudar no sustento do casal, já que ele não passa de um pobre rapaz.
Eu tenho a imagem de Você como uma mulherzinha imatura, dependente e chata, própria para ser teúda e manteúda por algum homem mais rico.
Eu tenho a imagem de Você como uma mulherzinha imatura, dependente e chata, própria para ser teúda e manteúda por algum homem mais rico.
Então ele compara Você com a Amélia. Não sabemos se a Amélia ajudava no sustento da casa, se lavava roupa para fora, ou mesmo trabalhava fora do lar, mas sabemos que ela estava sempre ali, solidária, e que, em vez de reclamar, quando ele se deprimia por falta de dinheiro, ela o animava e apoiava. Dá-me a impressão de ser muito mais madura e independente.
Assim vistas as coisas, Amélia me parece mais próxima do que eu chamaria de mulher moderna e independente. Mas não contem isso às minhas amigas e alunas, elas são capazes de me linchar.
A sabedoria tradicional enganou a todos e não adiantou o Ataulfo tentar explicar. Acho que nem eu.
A sabedoria tradicional enganou a todos e não adiantou o Ataulfo tentar explicar. Acho que nem eu.
Ou então tomemos o caso do Gerson.
Ele nunca fala da Lei de Gerson e fica bravo se lhe perguntam a respeito. Coitado, uma vez eu vi a mulher dele dando uma entrevista em que dizia que o maior arrependimento dele na vida foi ter feito aquele comercial do cigarro Vila Rica, da RJReynolds.
O Gerson é um homem afetuoso e modesto, mais para bonacheirão do que para a Lei de Gerson. Os amigos só pararam de troçar dele quando perceberam a irritação que lhe causavam.
A coisa se passou assim.
Em meados dos anos 70 do século passado, a RJR decidiu lançar o cigarro Vila Rica. A proposição de consumo era a de que você podia desfrutar do sabor pleno de um bom cigarro, por um preço mais barato do que as marcas líderes de então.
A LPM realizou a pesquisa qualitativa, discussões em grupo, previamente ao desenvolvimento da campanha publicitária. O relatório final foi produzido pelo Luciano Dordal Cleto. Foi um trabalho excelente para orientar a criação.
De lá veio a idéia de resumir a proposição de consumo (mais sabor com preço menor) numa frase que o relatório inspirou: “Se posso ter todo esse sabor em Vila Rica, por quê vou pagar mais? Gosto de levar vantagem em tudo”, isto é, no preço e no sabor.
A formulação da frase assim resumida e a idéia de botar essa proposta na boca de um campeão do mundo, então muito popular, foi da equipe criativa da Caio Domingues, com o próprio Caio à testa. A pesquisa foi excelente, mas ela jamais poderia ter bons resultados sem uma equipe criativa de primeira, que fez um trabalho também excelente, pinçando, de citações textuais e da interpretação do relatório, a formulação correta da campanha.
Esse comercial de lançamento de Vila Rica foi o campeão de índices de recall entre adultos de ambos os sexos na história do Day After Recall no Brasil, apesar de ainda ter sido produzido em preto e branco.
Os resultados de venda foram expressivos e corresponderam ao sucesso publicitário.
E daí alguém inventou a famosa “Lei de Gérson”, coitado, que não tinha a ver com isso, e que se resume na frase: gosto de levar vantagem em tudo. Lema do pessoal lá de Brasília e de outras bandas também, mas não do Gerson.
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