Uma abordagem criativa de pesquisa resolve um antigo problema intratável da Cardiologia
As conclusões da pesquisa realizada pela LPM-Research, em conjunto com a AnEx Futuros, apresentadas no XXVI Congresso de Arritmias Cardíacas, foram recebidas com entusiasmo pelos congressistas. A pesquisa produziu um resultado buscado pela comunidade médica há muito tempo, e foi realizada através da aplicação de uma metodologia sofisticada, com base na experiência dos próprios médicos, analisada pela Teoria do Julgamento Comparado de L.L. Thurstone.
O XXVI Congresso de Arritmias Cardíacas
O XXVI Congresso reuniu em Campinas, no fim de outubro passado, os mais importantes especialistas de um ramo bastante complexo e especializado da Medicina. Entre eles estavam sumidades de todo o Brasil e também dos Estados Unidos, Portugal, Argentina, Inglaterra, França e Noruega. Havia cerca de 900 profissionais presentes e o evento foi considerado um sucesso.
No dia 27 fizemos a apresentação dos resultados da pesquisa desenvolvida para a SOBRAC (Sociedade Brasileira de Arritmias Cardíacas) e para o DECA (Associação Brasileira de Arritmia Elet. e Estimulação Cardíaca), com o fim de estimar o número de MSC (Mortes Súbitas Cardíacas por Arritmia) em São Paulo.
O resultado foi recebido com entusiasmo na sua apresentação. Estimamos em 21.270 MSC na Grande São Paulo em 2007, último dado de estatísticas de óbitos do sistema SUS. Em outras palavras, esse é o número de mortes que, teoricamente, poderiam ser evitadas mediante diagnóstico prévio, tratamento adequado, pessoal treinado, disponibilidade de desfibriladores, etc.
Houve quem dissesse que se tratava do evento mais importante e significativo do Congresso. Trata-se da primeira estimativa com métodos científicos de um número que muitos adivinhavam ser grande, mas que ninguém conseguiu até então quantificar. E mais: a pesquisa ainda investigou o que estaria acontecendo com tantos pacientes que morrem diariamente e por quê não são tratados a tempo.
Mas qual a razão de tanto entusiasmo pela pesquisa?
Os antecedentes
Já expliquei o fenômeno da MSC em matéria anterior neste blog.
Não existem estatísticas de incidência de MSC no Brasil, uma vez que ela não é reconhecida como causa de morte para fins dos atestados de óbito, que são a fonte das estatísticas de mortalidade. Entretanto, sabe-se que, no Brasil, como ocorre no mundo todo, a incidência de MSC deve ser alta.
A sua prevenção é possível, mas depende de preparo dos profissionais de atendimento primário para o correto encaminhamento do paciente, de exames especializados, e por vezes de procedimentos de alta complexidade, que podem até exigir o implante de aparelhos desfibriladores permanentemente ligados ao coração do paciente.
É fácil deduzir-se que isso é complicado – e caro.
O problema dos gestores (não só dinheiro, mas direcionamento de recursos em geral) é como justificar legalmente a aplicação de recursos públicos para evitar um tipo de morte que, oficialmente, não ocorre.
Donde, a importância de se ter uma estimativa confiável.
E mais: se não existem esforços para conter a tempo essas supostamente frequentes MSC, deve haver muita gente precisando de cuidados preventivos e de medicamentos e aparelhos especiais – aqueles pacientes que ainda não morreram. Onde estão essas pessoas? Se existem filas para transplante de rim, por quê não existem pacientes à espera da disponibilização de desfibriladores implantáveis?
Objetivos e abordagem de pesquisa
Existem dados confiáveis sobre causas de mortes nas estatísticas oficiais do SUS. Entretanto, entre elas não figura a MSC. Nossa abordagem foi a de posicionar a MSC entre outras causas, cujas incidências sejam conhecidas e confiáveis, a partir da experiência dos próprios médicos.
Para isso, baseamo-nos na Teoria do Julgamento Comparado de L.L. Thurstone, com a adoção do Caso IV e respectiva metodologia analítica. Mediante a adoção prévia de certos pressupostos, Thurstone demonstrou que é possível recuperar as propriedades intervalares de uma escala desconhecida, a partir da comparação pareada entre os estímulos.
Essa escala intervalar não corresponde à real, uma vez que ela não indica nem a origem nem a unidade originais, mas é monotônica com ela.
O nosso raciocínio foi o seguinte: se obtivermos uma escala Thurstone (meramente intervalar, em graus-padrão) na qual estejam representadas pelo menos três ou quatro causas de morte conhecidas, será possível deduzir um modelo matemático capaz de transformar o grau-padrão da MSC em número de óbitos.
Para garantir uma maior riqueza dos resultados, selecionamos outras seis causas de morte que pareciam obedecer simultaneamente a três requisitos:
1. que tenham estatísticas confiáveis e oficiais a respeito da incidência de óbitos;
2. que não tenham qualquer relação com problemas cardiovasculares;
3. que incluam causas mais e causas menos frequentes, para possibilitar a adoção de um modelo válido para toda a amplitude de prováveis variações entre as quais a MSC deveria ser posicionada.
A pesquisa, portanto, deveria comparar todos os pares de sete causas de morte (as seis que serviriam de âncora e mais a MSC).
Implementação do modelo
Os questionários foram aplicados a uma amostra de médicos atuando no sistema SUS, divididos em UBS (Unidades Básicas de Saúde), PA (Prontos Atendimentos), Ambulatórios e Hospitais. As entrevistas foram telefônicas.
A vantagem da metodologia contemplada é que o respondente não precisa conhecer os números reais. Thurstone demonstrou que quanto maior for a diferença entre dois pontos, tanto mais frequentes serão as afirmações de que eles são diferentes. Portanto, na comparação pareada, basta que a pessoa tenha uma idéia geral, ainda que vaga, de qual de duas causas de morte ocorre com maior frequência. E nem é necessário que os respondentes acertem sempre, uma vez que o modelo é estocástico.
Mas ainda assim achamos que seria pedir demais que o médico, eventualmente respondendo entre consultas, ordenasse sete causas de morte por ordem de frequência – e muito menos que respondesse com relação a cada combinação de 7 causas comparadas duas a duas.
Optamos então por um questionário de comparações 3 a 3 (tríades) por BIB (Blocos Incompletos Balanceados). Isso nos proporcionou sete blocos ortogonais de entrevistas, de tal modo que:
1. cada estímulo foi julgado igual número de vezes,
2. cada par ocorreu igual número de vezes,
3. cada tríade ocorreu igual número de vezes,
4. cada estímulo foi comparado igual número de vezes com cada um dos demais estímulos,
5. que cada bloco de entrevistas teve amostras independentes, equilibradas por cotas,
Foi possível reduzir a amostra total a 196 entrevistas por esse sistema, todas elas realizadas na Grande São Paulo. As estatísticas de mortalidade do SUS para a GSP estavam, ou estão, atualizadas até 2007.
Na prática, isso significou que cada entrevistado deveria responder simplesmente a uma pergunta assim:
“Dr. Fulano, destas 3 causas de morte qual o sr. acha que é a mais frequente? e qual a menos frequente: MORTE SÚBITA CARDÍACA ou MORTES POR CAUSAS EXTERNAS ou MORTES POR MOLÉSTIAS GENITURINÁRIAS?”
E aí terminava a entrevista.
A investigação sobre o funcionamento do sistema
Mas a coisa não parou aí. Queríamos também ter uma indicação a respeito dos problemas que o sistema enfrenta entre um primeiro diagnóstico eventual e a morte. Para isso, realizamos 100 entrevistas, com as mesmas cotas, com perguntas abertas e, no final, colocando a questão perante o entrevistado: e a fila que não existe, onde está?
Resultados
O método adotado provou ser um sucesso. A correlação observada entre a escala Thurstone (opiniões dos médicos) e a escala de contagem de óbitos do SUS foi de 0,97, com um r2 = 0,95. Interpretando: 95% das variações de respostas dos médicos são determinadas pela incidências reais de mortes.
Note-se uma peculiaridade neste caso. Aprendemos como básico o princípio de que, em correlações, não se pode dizer que uma variável cause a outra; apenas podemos afirmar que elas são correlatas. Qualquer uma das duas pode ser causa da outra, como também ambas podem ser causadas por uma varia terceira variável desconhecida.
Entretanto, essa reflexividade causal entre duas variáveis neste caso não existe. Jamais poderíamos dizer que é possível que as respostas dos médicos ao nosso questionário tenham causado as mortes observadas pelo SUS. Entretanto, faz todo o sentido dizer que a realidade dos óbitos influencia as opiniões dos médicos a respeito de sua frequência.
O r2 de 0,95 não só é muito alto, como obedece à lógica que o bom senso nos autorizava a esperar, validando a metodologia adotada.
Mesmo computando intervalos de confiança, a correlação permanece alta – a 95% de certeza, ela estaria em cerca de 0,85, na pior das hipóteses.
O número de mortes súbitas por arritmias ocorridas em 2007 foi projetado em 21.270 óbitos.
Conclusões
As seguintes conclusões foram apresentadas após discussão dos resultados com a equipe médica especialista:
1. A incidência de MSC em São Paulo é bastante alta, igual ou superior à de neoplasias (câncer) e cerca de duas vezes superior às mortes por causas externas (acidentes, suicídios, assassinatos, envenenamentos, etc.). Observou-se no Congresso que esse resultado parece refletir uma situação parecida com a observada nos Estados Unidos e outros países, que dispõem de estatísticas confiáveis.
2. No entanto, apenas menos de 2% dos pacientes com problemas graves são corretamente diagnosticados e tratados.
3. Não existem filas aparentes de espera por tratamento adequado porque essa espera é pulverizada num sistema complexo e burocrático de gestão da saúde pública, com várias camadas de atendimento, que devem ser percorridas em degraus sucessivos antes de ser possível, por exemplo, a implantação de um desfibrilador, quando é o caso.
4. E nem se deve esperar que se organizem filas de espera. Como disse um entrevistado, “o problema da morte súbita é súbito, não faz sentido organizar uma espera” – ou seja, é preciso organizar um sistema eficiente de atendimento imediato e preferencial. Os recursos existem (teoricamente), trata-se mais de uma questão de gestão que requer, como preliminar, o reconhecimento do problema.
5. Uma das medidas necessárias é adequar o preparo dos próprios médicos trabalhando no atendimento primário (UBS e Prontos Atendimentos). A SOBRAC e o DECA se propõem a enfrentar o problema de modo realista: aparentemente, a falta de preparo para diagnóstico prévio de arritmia cardíaca ocorre apenas em 15% dos profissionais de atendimento primário.
6. Para as demais providências, entretanto, é necessário que as autoridades públicas dêem o suporte que o problema requer. Espera-se que, com este trabalho, possa dar-se início ao reconhecimento da gravidade da situação. E esse seria – ou será – o marco de uma nova etapa no atendimento médico do Brasil.
Bibliografia
L.L. Thurstone (1927): A Law of Comparative Measurement – Psych. Review, 34, 415-423
L.L. Thurstone (1927) : Psychophysical Analysis – American J. of Psych., 38, 368-389
L.L. Thurstone (1948) Psychophysical Methods in T.G. Andrews, Ed. – Methods of Psychology, NY, Wiley
Warren S. Torgerson (1967) – Theory and Methods of Scaling – Wiley and Sons
Clyde H. Coombs (1964): A Theory of Data – Wiley and Sons
Clyde H. Coombs, Robin M. Dawes, Amos Tversky (1970): Mathematical Psychology – Prentice-Hall, N. Jersey
www.datasus.gov.br
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