Gente, falou-se tanto no Muro de Berlim esta semana que passou que eu até fiquei meio enjoado do assunto.
Certo, certo, o evento marcou o fim de uma ditadura e isso, em si, foi bom. Mas as baboseiras que se inventaram desde então ofendem meu senso crítico e as mentiras que hoje são passadas por verdades a respeito do Socialismo e do Capitalismo são incontestáveis apenas porque não são contestadas - não é politicamente aceitável contestá-las.
Pelo visto, estou condenado a ser um marciano, sob a ótica dos meus pontos-de-vista. Vejam só, as coisas que me parecem óbvias mas que não podem sequer ser discutidas - quem vai levá-las a sério hoje em dia?
Por exemplo:
1. O Século XX assistiu à vitória de todos os ideais socialistas do começo do século passado
Os ideais socialistas, herdados do Século XIX, acabaram todos vitoriosos no Século XX. Jornada de oito horas (no início, o ideal, combatido pelas polícias e pelos Estados aristocráticos e burgueses como subversivos, eram dez horas). Proibição do trabalho infantil. Descanso semanal remunerado. Liberdade de organização sindical (ainda não consolidada em países como o Brasil, e em decadência, hoje, nas nações "avançadas"; mas esta é outra história, que não a do Século XX). Férias remuneradas. Liberdade de greve. Liberdade de opinião (bem, esta também uma conquista, digamos, sujeita a certas ressalvas). Liberdade de associação.
Na verdade, o que ocorreu é que a pressão do movimento socialista, que começou expressamente na Revolução Francesa, foi sistematizado por Marx e Engels e organizado pela Internacional Comunista, levou o Capitalismo a recuar em suas práticas predatórias e a absorver todas as bandeiras tradicionais socialistas, como se fossem suas. Foi uma vitória da tradição socialista, não do capitalismo.
Mas foi também uma demonstração da flexibilidade, da vitalidade e do caráter revolucionário que Marx reconheceu no sistema capitalista.
Adotando uma bandeira idealista em uma luta corajosa contra a desigualdade, a Esquerda esqueceu o fundamento da dialética materialista que Marx sistematizara. Cristalizou-se nos seus ideais e utopias, descolados de suas raízes materiais e históricas. O Capitalismo cumpriu o que Marx havia diagnosticado: meio apátrida, meio americano, meio europeu, evoluiu com a Globalização e atualizou-se. Salvou-se, adotando as reformas socialistas.
A Social-Democracia abandonou suas raízes marxistas e tornou-se eficiente coadjuvante do sistema capitalista.
Salvou-se o Capitalismo, com ânimo redobrado e soberba ainda mais. Entretanto, para fazê-lo, ele adotou as bandeiras esquerdistas que antes tinha reprimido com violência.
2. A União Soviética não era um país socialista
O movimento comunista obteve uma vitória na Rússia em 1917, mas começou tentando implantar um regime utópico, inviável, que depois seria sequestrado pelos dirigentes da URSS e transformado numa luta nacionalista pela hegemonia russa, sob a bandeira de um ideal antiimperialista.
Para defender a Revolução, os soviéticos fecharam suas portas ao mundo. Não tinham outra opção: é preciso lembrar que tinham o mundo contra si e que, durante os primeiros anos do regime comunista, havia tropas estrangeiras lutando contra o novo regime dentro do território soviético. Foi uma invasão aberta, sem declaração de guerra.
Embora os russos tenham conseguido defender seu território, no fundo, no fundo, o lado contrário teve sucesso: o movimento socialista ficou isolado e bloqueado num único país e a Alemanha, que estava pronta para uma revolução comunista, salvou-se (para logo depois criar o Nazismo). Marx já alertara para a inviabilidade de um sistema socialista isolado e Rosa Luxemburgo previu exatamente o que aconteceria com a Alemanha, quando a Social Democracia alemã decidiu isolar-se da Revolução Soviética e adotar a política patriótica e belicista do governo de então.
Depois disso acabou a Internacional e vieram o Komintern, os expurgos, o stalinismo e a Guerra. A Guerra forçou ainda mais o fechamento do regime. E seguiu-se a Guerra Fria. E a Cortina de Ferro, fruto do isolamento da URSS e da agressividade do Ocidente. E, para proteger-se, a URSS instituiu os regimes chamados "satélites": na verdade, foram criados como regimes impostos por ocupação militar e não por revoluções operárias, como queriam os idealistas de Esquerda.
Difícil é falar-se, portanto, numa derrota do Socialismo ou do Comunismo com a queda dos regimes políticos vigentes no então chamado "Segundo Mundo".
3. A União Soviética foi derrotada não por ideais democráticos, mas pelo poder econômico dos Estados Unidos
A União Soviética proporcionou um progresso econômico e material na antiga Rússia numa escala nunca vista até então em qualquer nação. Gerações se passaram que já esqueceram que a Rússia era um império enorme em sua vastidão territorial, com áreas enormes geladas e desabitadas como um Sahara de gelo. País rural, finalizava o Século XIX como uma nação medieval, feudal, atrasada, pobre, com uma população miserável e esparsa, e uma aristocracia arrogante que se via européia e descolada da plebe.
Pois foi esse país que os soviéticos industrializaram (com grande sacrifício, inclusive de liberdades e vidas humanas), que venceu a máquina de guerra nazista, até então invencível; que se tornou a segunda potência nuclear do mundo e foi a pioneira da exploração do espaço.
Apesar disso, o poderio econômico da URSS não se comparava ao dos Estados Unidos. O seu poderio militar era mantido com enorme sacrifício econômico e humano, resultando numa paralisação de conquistas sociais desejáveis e teoricamente possíveis. Jamais saberemos se seriam realmente viáveis, em outras condições. Gorbaschev tentou consertar isso, mas deu no que deu. O sonho acabou fazendo água nas mãos daquele beberrão do Boris Yeltsin.
E a grande sacada de Ronald Reagan, que enterrou uma estaca no coração do assim chamado Comunismo soviético, foi o blefe da Guerra nas Estrelas. Um esforço inicial soviético para responder a esse desafio resultou na gota dágua que faltava para a falência econômica do regime.
A CIA havia previsto isso. Num relatório secreto, recentemente liberado, ela calculou a capacidade de investimento da economia soviética e chegou à conclusão de que esta iria desmoronar sozinha por falta de recursos para sustentar o crescimento necessário para manter uma estabilidade social e política.
Para apresentar a fachada de potência, o Estado soviético sacrificava os interesses sociais a fim de manter a produção através de uma máquina que já estava desgastada e no limite sua capacidade. Uma situação claramente insustentável. Mas, para os dirigentes soviéticos, não havia alternativa. A URSS estava encurralada.
O irônico é que, alguns anos depois da queda do regime soviético, o Governo americano reconheceu que a Guerra das Estrelas era um blefe. Nem mesmo os Estados Unidos dispunham da tecnologia e dos recursos propaladamente investidos na sua eventual viabilização.
4. O fim da URSS deixou um vazio que nos faz uma enorme falta
Longe de mim defender regimes totalitários, ainda que sob a máscara de um ideal socialista. Mas é preciso reconhecer que a URSS, ao lado de seus defeitos, apresentava muitos aspectos positivos e representava precedentes importantes.
Mas isso a história poderia recuperar, se não fosse o efeito perverso causado pela sua derrota. Com o fim do ideal comunista, simbolizado na queda do Muro, acabou qualquer referência de alternativa ao regime capitalista pseudo-liberal. Veio o Reaganismo/Thatcherismo e a adoção da ideologia da Escola de Chicago como verdade inconteste. E o chamado neoliberalismo impôs suas idéias de modo tal que hoje é difícil pensar em outros moldes, com outra lógica que não seja a estritamente contábil-idealista de Friedman.
Alguns pensadores e economistas se contrapõem a essa tendência, mas quem ouviu falar deles? Quem sabe o que é "The Other Canon" ou quem é Reinert? Veja no Google. Aviso: eles não são socialistas nem marxistas. Em pleno Século XXI, vivemos em 1984, pensando em Novilíngue. E, até a Crise de 2007/hoje, vivíamos também num Admirável Mundo Novo, felizes com nosso consumismo e com nosso soma (maconha, crack, cocaína, álcool, cigarros, televisão, internet, pornografia, telenovelas, baladas, etc.).
Falar de "Imperialismo" hoje é considerado como coisa de troglodita e rejeitado sem maiores argumentos, embora a Globalização seja exatamente isso. Só que o Capitalismo agora assumiu expressamente o que Marx disse a seu respeito: o Capital não tem pátria. É global.
Do outro lado, deveria estar a Esquerda, mas não está. Quer dizer, existem uns esquerdistas por aí, mas estão todos meio desorientados. O que é um Socialismo sério, viável, hoje? Pergunte e ouvirá muitas respostas e pouco sentido.
Uma definição que chegou mais ou menos perto, na sua simplicidade, eu a ouvi de Roberto Freire recentemente na TV: a Esquerda defende a igualdade, a Direita defende a desigualdade. Tem sentido. Mas só isso é muito simplista para satisfazer.
A idéia da "teoria" da "Suply Side" e do "Trickle Down" de Reagan serve exatamente para defender a desigualdade social. De acordo com ela, deve-se desviar sempre os recursos públicos e as isenções de impostos em benefício dos mais ricos, pois isso lhes dará estímulo para investirem, tornarem-se ainda mais ricos e, assim, criarem os empregos e oportunidades que vão beneficiar os mais pobres.
Que idéias desse jaez possam ser discutidas seriamente e defendidas por governantes das maiores potências do mundo só pode ser possível na ausência de uma visão alternativa, ainda que distorcida, que a mera presença de uma URSS representava.
5. As idéias neoliberais são de uma lógica irrepreensível
Que o Mercado tende sempre a recuperar o equilíbrio numa economia livre me parece incontestável, se dadas as premissas da teoria liberal de Adam Smith e Milton Friedman.
Tudo pode ser reduzido a acordos livremente contratados entre partes igualmente informadas e igualmente livres para negociar. Como num mercado persa ou numa feira livre de São Paulo. Se as duas partes se dão por satisfeitas, na busca de seu próprio interesse, o interesse social acabará bem servido, independentemente da intenção delas. E assim a vida segue, feliz.
Vivendo, como vivemos, numa sociedade capitalista e adotando uma política neoliberal, vivemos, portanto, no melhor dos mundos. Eis uma verdade lógica, contábil e matemática, portanto indiscutível. É o fim da história, como quer Fukuyama.
6. Mas a realidade é histórica, não lógica: o ideal liberal é utópico
Entretanto, o mercado, na prática, costuma se ajustar por crises, por altos e baixos, por guerras - sim, as guerras também são ajustes econômicos do sistema. E as pessoas não gostam disso.
Na prática, as coisas são diferentes. Os mercados tendem a ser dominados por monopólios e oligopólios, as partes atuantes no jogo econômico geralmente não são iguais nem são igualmente bem informadas, as grandes empresas têm escala para sustentar ineficiências e experiências que matariam no nascedouro qualquer empreendimento menor, o poder econômico confunde-se com o político, o mercado é um vasto território aberto para predadores, o consumidor que se satisfaça com o que as empresas lhe dão, e as pessoas que se satisfaçam com a liberdade de escolher marcas e produtos.
O neoliberalismo provou seu fracasso sempre que foi implantado com rigor nos últimos vinte anos. Os teóricos neoliberais sempre justificam dizendo que, em todos esses casos fracassados, a implantação não foi inteiramente de acordo com os princípios liberais. O que me leva a concluir que os princípios liberais existem apenas no mundo abstrato da teoria econômica.
Historicamente, os países ricos só adotaram políticas liberais de livre comércio nas instâncias e momentos em que um comércio livre beneficiou suas economias. Até lá, sem exceção, todos eles foram altamente protecionistas e intervencionistas. Isso desde os Reis Henrique VII e Henrique VIII, e Cromwell, na Inglaterra, desde Luiz XIII, Luiz XIV e Napoleão na França, até as guerras imperialistas de conquista mais modernas, a Guerra do Ópio na China, o colonialismo africano. E até o protecionismo do milho e do algodão dos Estados Unidos hoje em dia, sob Bush e Obama, como recentemente reconhecido pela OMC no caso do algodão.
Nenhum país desenvolvido conseguiu desenvolver-se sem industrialização, diversificação econômica, crescimento do capital interno e proteção fiscal e alfandegária do Estado contra a concorrência estrangeira.
7. Democracia e Liberalismo são animais diversos
Agora, com o crescimento da China, propagam-se duas mentiras que são explicita ou implicitamente aceitas, mesmo pelos que não acreditam nelas. Até que um dia todos vão acreditar.
Primeira mentira: que a China está adotando uma economia de mercado.
Não é verdade. Confesso que não entendo o que está acontecendo lá e estou muito curioso a respeito, mas sei que o Estado chinês interfere sem restrições na esfera econômica, que concede liberdade de atuação às firmas que vão investir no que interessa à política econômica determinada pelo Partido Comunista, que a vida financeira está toda centralizada na esfera estatal, que o câmbio é manipulado para proteger a exportação.
Os salários são baixos e isso atrai o capital internacional, o que é estimulado pelo Estado. A organização sindical é limitada e severamente restrita pelo Estado. Os salários podem ser baixos porque o Comunismo garante um padrão mínimo de custo de vida, que torna compatível o baixo salário. Uma situação radicalmente diversa da dos países onde o mercado determina o custo de vida. Sem o planejamento central, a atuação do Estado e as garantias de estabilidade oferecidas pelo Partido Comunista, a China perderia o encanto para os investidores.
Isso pode não ser a visão clássica do Comunismo de 1917, mas certamente não é nada parecido com uma economia capitalista.
Segunda mentira: que capitalismo liberal e liberdade andam sempre juntos. Repete-se a torto e a direito que, com o desenvolvimento econômico, o regime chinês irá abrir-se politicamente como consequência do aumento da capacidade de consumo.
Pode ser. Mas também pode não ser.
Essa é uma visão que reduz o ser humano e o homem político a uma única categoria: a de consumidor. A própria China é um exemplo de que isso não é verdade. Por mais de dois mil anos, a nação e a civilização mais avançadas em tecnologia, engenharia, invenções, organização do serviço público e comunicações foi, de longe, o Império Chinês.
Não havia democracia nem liberdade. As elites chinesas, numa certa altura, decidiram que nada deveria mudar, nem as aplicações tecnológicas ao seu alcance, nem as armas de guerra, para manter eternamente seus privilégios intactos. O povo queria apenas viver e comerciar: democracia e liberdade política eram categorias fora do seu alcance mental.
E fecharam-se para o mundo, numa sociedade patriarcal e tradicional, onde nenhum progresso era admissível. Até que os europeus intervieram e dominaram com facilidade uma potência enfraquecida, imobilizada, esfacelada e paralisada no tempo .
Mas existe ainda um último alerta a esse respeito. A democracia formal, ao lado de um pensamento hegemônico, como o que nos foi imposto depois da Queda do Muro, dispensa um ditador de carne e osso que impõe sua vontade sobre um povo inerme.
O conformismo, alimentado pelo consumismo e pela falta de pensamento, dispensa uma ditadura. Existe o totalitarismo sem o ditador. E nós estamos satisfeitos. Mais para "Admirável Mundo Novo" (Aldous Huxley) do que para "1984" (George Orwell).
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