“WHAT IS IN A NAME?”
Julieta, Cena II, Segundo Ato, “Romeu e Julieta” (W. Shakespeare)
No seu romance futurista, “1984”, George Orwell desenvolveu a idéia de que um grande ditador (o Big Brother) teria criado o Novilíngue, uma sutil, paulatina mas radical transformação do inglês corrente numa língua em que só é possível expressar idéias politicamente corretas – corretas, é claro, julgadas conforme o Partido Único, sob a direção dele, o Ditador Supremo.
O Novilingue teria certas características importantes. Por exemplo, é uma língua extremamente sintética, que usa um vocabulário reduzido e simplificado. O princípio é o de que a simplificação do vocabulário acaba engendrando a simplificação do pensamento e reduz o senso crítico e a capacidade de julgamento. Sinônimos são abolidos, juntamente com as nuances e conotações correspondentes.
Assim é que se tornam arcaicas expressões como “desejável”, “justo”, “belo”, “ótimo”, (nuances de intensidade são abolidas, só existem o preto ou o branco), que se reduzem simplesmente ao vocábulo “bom” (“good”). Evitam-se substantivos abstratos, como “moral”, “justiça”, “beleza”, etc., que estão por ser abolidos da língua oficial.
Ao mesmo tempo, o significado do que é “bom” fica estabelecido como sendo tudo aquilo que está de acordo com o pensamento do Big Brother e a doutrina do Partido. Os antônimos também são banidos. Uma coisa ou é boa ou não-boa (“ungood”) – ou seja, tudo o que está de acordo com Big Brother é bom e o que não está é não-bom (“ungood”).
Ficam abolidas as nuances. Existem construções verbais teoricamente possíveis, mas que acabam não sendo usadas. Se você disser que “Big Brother é ungood” simplesmente não será entendido por ninguém: a frase não teria sentido. Seria como afirmar “bom é não-bom”.
Aprendi com meu antigo mestre de Direito Comercial, Waldemar Ferreira, que a língua Portuguesa tem um vocábulo exato e vernáculo com o significado de “Marketing”. Esse vocábulo de aroma medievalesco é mais antigo do que a atual expressão inglesa: “Mercancia”. Mas não o encontro nos modernos dicionários; encontro Marketing como palavra do Português no Houaiss.
Primeiramente, Marketing, tanto quanto Mercancia, designa uma atividade e não uma ciência acadêmica, como pedantemente tentou-se fazer crer ao introduzir a palavra Mercadologia na nossa língua. É claro que se pode fazer ciência em torno do Marketing e lecioná-la na Academia, mas Marketing não se reduz à chamada Mercadologia e a precede.
O Marketing é uma atividade comercial, a de atuar no Mercado: vender produtos e serviços mediante lucro. Literalmente, “mercadejar”. Mercancia.
Neil H. Borden escreveu um ensaio que se tornou um texto seminal do Marketing moderno: “O Conceito de Marketing Mix”. Ele explica de quê trata a matéria. “Marketing Mix” inclui todas as atividades sobre as quais a empresa tem poder de atuar e que constituem a função de Marketing. Resumindo, no caso de um produtor industrial, o Marketing consiste em:
1. Planejamento de Produto – linhas de produtos (qualidade, design, etc.), mercados-alvo, programa de desenvolvimento e lançamento.
2. Precificação (“pricing”) – política de preços, margens.
3. “Branding” – Política de marcas, marcas individuais ou “umbrella”, significados das marcas.
4. Canais de distribuição – Canais definidos entre a fábrica e o consumidor, políticas com relação a representantes, escritórios regionais, políticas junto a varejistas e atacadistas, promoções ao trade.
5. Vendas pessoais – procedimentos na própria organização do fabricante, segmento atacadista, grandes redes, etc.
6. Publicidade – Verbas, políticas de mídia, mensagens a serem transmitidas; imagem corporativa e RP; publicidade junto ao trade.
7. Promoções – Verbas de promoção junto ao trade e junto ao consumidor, objetivos das promoções e políticas de promoções.
8. “Packaging” – políticas de embalagem, rótulo e marcas.
9. “Display” – Métodos e recursos de display do produto e da marca para dar-lhes maior visibilidade.
10. “Servicing” – Serviços pre e pos-venda.
11. Manipulação física – Estocagem, depósitos, transportes.
12. Informação e análise – Procedimentos e recursos para levantamento de dados internos e externos e para pesquisas de mercado.
Borden não menciona expressamente “Merchandising” porque essa área está implicitada na lista acima: inclui Packaging, Display, Manipulação Física e parte do Servicing.
Tais são os instrumentos com os quais o Gerente de Marketing (ou Diretor de Marketing) deve enfrentar as forças externas para construir o sucesso da firma. São o “Marketing Mix” da empresa.
As forças externas são aquelas que escapam do controle e do ambiente da empresa. Incluem o comportamento de compra do consumidor, o da revenda, o dos concorrentes e o dos governos.
Marketing é a atividade de lidar com esse “mix” para auferir vantagens comerciais. É mercadejar. É a tarefa de levar o produto da fábrica ao consumidor para atender a uma necessidade deste e obter um lucro como retribuição.
Assim como o Diretor de Marketing deveria responsabilizar-se pela coordenação e decisões a respeito do Marketing Mix da empresa, o Gerente de Produto deveria fazê-lo com relação ao produto a seu cargo.
Mas, na prática, hoje a coisa se simplificou extremamente. A atividade de Marketing torna-se cada vez mais uma rotina de acordo com protocolos anônimos, baixados de cima para baixo, especificando as regras que constituem o “policy” da empresa. Alguns vocábulos deixaram de ser usados, pelo menos no seu sentido próprio original. Por exemplo:
“Publicidade” – Praticamente caiu em desuso. Fala-se em “Propaganda” ou “Marketing” em vez de “Publicidade”.
“Propaganda” – Propaganda, em inglês, designa especificamente a propaganda política. Desde a II Grande Guerra (1939-1945) a palavra passou a ser execrada, porque Goebbels era o Ministro da Propaganda do III Reich nazista. Ele era considerado um mestre exemplar de Propaganda, até que se suicidou no bunker de Hitler. Passamos algum tempo sem sinônimo politicamente correto, usando “Propaganda” como substituta eventual de “Publicidade”. Até que surgiu a expressão “Marketing Político”, um absurdo anglicismo criado e geralmente aceito apenas nos países onde não se fala inglês. “Marketing” (mercadejar) pressupõe um mercador, que atua em benefício pecuniário próprio e não em função do interesse político (da Polis, a Comunidade em que ele atua). Ou talvez, pensando bem, o equívoco talvez reflita algo verdadeiro, caso em que... Ah! deixa prá lá.
E os vocábulos estão mudando de significado. Por exemplo:
“Marketing” – Eis uma palavra que não tem mais relação com a sua origem, tradução ou significado próprio. Hoje em dia o Marketing é feito pelo pessoal de Publicidade (mas não se usa mais essa expressão, “publicidade”). O Gerente de Produto não gerencia mais e nem é o responsável pelo produto. Em geral, desempenha o papel de intermediário com a Agência de Propaganda. O Departamento de Vendas é separado do de Marketing. As verbas de Marketing são determinadas pelo Departamento Financeiro, que determina as políticas de “Pricing” e de margens. E, a respeito de “Marketing Político”, já falei acima. Costumo pensar que quem usa o termo não conhece nem Marketing, nem Política, nem Inglês, mas há ilustres doutores hoje na matéria, então só penso isso mas não vou falar em voz alta.
“Merchandising” – Merchandising passou a ser aquilo que a Globo chama de Merchandising. É o que ela faz nas novelas e em outros programas, desde que, com sucesso, decidiu acabar com o “jabá” e a corrupção endêmica que havia dentro das emissoras. Deu-me embaraço, certa vez, presenciar o mal entendido num congresso de Propaganda aqui em São Paulo. Um homem de Mídia indagou de um conferencista americano respeitável qual seria “a sua opinião sobre a eficiência do Merchandising” – pensando, claramente, na publicidade disfarçada que a TV Globo oferece em seus programas. O conferencista obviamente não viu sentido na pergunta e se atrapalhou com generalidades, sem saber o que lhe perguntavam. Comparou Merchandising com Publicidade com Promoções para exemplificar a respeito das diferenças genéricas entre essas funções. Os presentes ficaram desorientados sem entender o que ele respondeu. Puseram a culpa na tradução simultânea.
“Mídia” – Há pouco tempo, para promover uma simulação de mercado de teste de lançamento de um novo produto, pedi ao Gerente de Produto informações sobre o seu “plano de Propaganda” (não era um Gerente júnior e a empresa era uma grande multinacional). Ele me garantiu que o produto seria lançado sem propaganda alguma. Estranhei. Ele insistiu. Quando acabei aceitando o que ele dizia, ela complementou: “Nem vamos produzir qualquer comercial. Vamos ter apenas algum material impresso”. Perguntei: “Que material impresso?”. E ele: “Anúncios em 4 cores de página dupla nas principais revistas”. Aprendi então que “mídia” agora significaria “comercial de 30” em TV” e o resto não seria mais Publicidade, apenas “material impresso”.
Pesquisa quali – As classificações úteis e inteligentes de Boyd e Westfall, dos tipos possíveis de pesquisas de mercado, são válidas até hoje: as pesquisas podem ser exploratórias, descritivas ou experimentais. Cada uma delas tem uma abordagem específica e limitações que lhes são próprias; incorporam metodologias e técnicas diversas, mas peculiares. Entretanto, essas classes foram substituídas por algo mais simples: as pesquisas hoje são quali (qualitativas) ou quanti (quantitativas). Essa simplificação refletiu a divisão das organizações de pesquisas em dois departamentos operacionais, distintos dos de vendas de serviços de pesquisas (atendimento ao cliente). Até os congressos de pesquisa oferecem debates e seminários simultâneos das áreas quali ou quanti, em salas separadas. Os de uma sala não falam com os da outra. E quali, para muita gente, passou a significar “focus groups”, o método mais simplório e falho de fazer pesquisas em geral, e o mais limitado em termos de pesquisas qualitativas. Mas é simples, fácil, rápido e barato.
Algumas tendências são visíveis nessas confusões, jargões, desusos de palavras e simplificações. Primeiramente, as mudanças semânticas parecem refletir mudanças do ambiente empresarial e das relações entre os atores econômicos. A confusão semântica revela confusão na vida concreta.
Segundo, as simplificações semânticas refletem as simplificações de funções, quando estas se tornam mais rotineiras – e, por consequência, menos importantes. O tema merece um estudo mais detalhado do que o possível nesta crônica.
É evidente que as palavras evoluem conforme a sociedade evolui. Não tenho críticas a fazer às mudanças, semânticas ou não, apenas porque mudam.Mas o ponto a que eu quero chegar tem a ver com “1984” e o Novilingue.
Acho que as mudanças semânticas têm, sim, a ver com o pensamento. Se refletem uma mudança do pensar ou se determinam tendências do pensar, eis um tema profundo demais para resolvermos aqui. Mas as essas coisas são correlatas.
Creio que o empobrecimento semântico, principalmente quando ocorre numa área técnica específica, está indicando que, ao tentar evoluir, podemos estar jogando fora a experiência conquistada.
Dispensamos o aprendizado em troca de uma vivência mais simples, imediata, de aplicação fácil no nosso dia a dia. Não precisamos pensar muito. Talvez nem precisemos mais pensar, já que hoje se fala que os computadores são ou serão capazes de fazer tudo ou quase tudo que as pessoas fazem, mesmo nas profissões intelectuais.
Não construímos sobre aquilo que o passado já conquistou, para enriquecer e aumentar o nosso conhecimento e as nossas conquistas. Aí cada geração tem de descobrir o óbvio novamente, em vez de usá-lo como patamar de novas experiências.
E isso é ruim: faz-nos perder tempo e evoluir menos, mesmo quando ainda evoluímos. A destruição criativa de Schumpeter não funciona de modo tão simplório.
PMA/1/9/2009
pma@anexfuturos.com
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