sábado, agosto 7

Indústria Nacional aqui e acolá



Encontro casual no Pão de Açúcar da Cardoso

Estávamos, Dilma, e eu, tomando um café com pão de queijo no Pão de Açúcar da Cardoso de Almeida.

Na mesinha ao lado, um grupo animado de três senhoras e um rapaz tentavam conversar com uma mulher visivelmente estrangeira. Esta se esforçava por entender o que lhe diziam, mas não conseguia. De vez em quando, ela ou alguém na mesa se referia "banco", "bank", "Itaú", mas ninguém se entendia direito.


"Diz prá ela que é aqui perto!"

“Aqui, aqui”, dizia uma das senhoras, falando mais alto e separando as sílabas, “aqui é um su-per-mer-ca-do” – e indicava a loja num gesto largo. “Su-per-mer-ca-do, não tem na Alemanha?”

A estrangeira tinha um sorriso aberto e um olhar vago de quem não está entendendo nada.

“Diz prá ela que aqui vende queijo”, alguém na mesa sugeriu.

Uma das mulheres mostrou a colher e disse, bem pronunciado:

“Co-lher! Co-lher!”

Uma das senhoras tirou um pacote de queijo da sacola e mostrou-o:

“Quei-jo! Quei-jo!”

A estrangeira parecia só saber dizer, meio encabulada:

“No comprendo.”

Nessa altura, a Dilma não conseguiu conter-se e caiu na risada. Estávamos muito próximos para disfarçar, então todos olharam para nós e fizeram silêncio. Dilma:

“Cheese. Cheese.”

“Ah, chee-se!”, exclamou triunfante a alemã, apontando o pacote de queijo que a outra tinha na mão.

“Isso, queijo! Cheese!” – rejubilaram-se as outras senhoras.

Todos na mesa bateram palmas entusiasmados e riam com satisfação. Estavam falando inglês e conseguindo se fazer entender!

Em inglês, a estrangeira dirigiu-se a nós:

“Que bom encontrar alguém que entenda o que eu quero dizer. Eu estou aqui porque me disseram para procurar a agência do Banco Itaú, onde tem um caixa automático do qual eu posso sacar meu dinheiro com um cartão. Procurei a agência e me disseram que era aqui perto, mas acho que me perdi.”

Explicamos a ela (em inglês, é claro) que a agência com caixa automático ficava ali perto, a um quarteirão. Ela fez menção de levantar-se e todos da sua mesa levantaram-se, abraçando-a como se fossem velhas amigas, trocando beijinhos e desejando felicidades mútuas.

As senhoras brasileiras saíram, mas a alemã não se afastou. Ao contrário, pôs-se de pé ao lado de nossa mesa e começou a contar:

“Sou alemã e estou passando três semanas no Brasil, como missionária da Igreja Bola de Neve. O pessoal da missão me manda dinheiro pelo banco semanalmente e eu preciso retirar o dinheiro da semana na Banco Itaú, porque hoje fiquei completamente sem dinheiro. Eu retiro com meu cartão.”

O rapaz que estava na mesa ao lado, com ela e as demais mulheres, estava de pé, meio afastado, em silêncio, esperando-a. Ela não parecia tomar conhecimento dele. Parecia uma situação de algum modo embaraçosa para ela. Convidei-a a sentar-se na nossa mesa para nos acompanhar num cafezinho.

“Não posso, estou sem dinheiro para pagar o cafezinho. Antes preciso ir ao banco.”

“Você é nossa convidada e nós estamos oferecendo o cafezinho”, disse eu.

Expliquei-lhe então que, como já era quase noite, não devia haver movimento na agência do banco e que ela devia tomar cuidado ao sair com o dinheiro. Ela agradeceu, mas nem olhava para trás, onde estava de pé o rapaz.

Suspeitei de algo e olhei interrogativamente para ele. Ele (que não entendera nada do nosso diálogo em inglês) falou, meio sem jeito:

“É que eu esperando ela para ir com ela no banco.”

Como eu não o convidei para sentar-se, afinal ele perdeu o embalo e foi embora sem dizer mais. Não era nenhuma paquera, como eu havia pensado antes, ele apenas queria “levar ela no banco”.

Ela parecia aliviada. Interessou-se em falar sobre o Brasil, que ela queria conhecer do modo mais completo possível em três semanas. Na semana seguinte, ela iria para algum lugarejo de Tocantins.

Então expliquei-lhe que ela iria conhecer uma realidade bem diferente da de São Paulo, que São Paulo (uma cidade da qual ela conhecera até então apenas o percurso do Aeroporto às Perdizes, a Rua Turiaçu e o Parque da Água Branca) é um grande centro industrial, uma metrópole que está se convertendo num mega centro de serviços, etc.

Ela parecia desconhecer praticamente tudo sobre o nosso País. Tudo o que eu dizia a surpreendia. Arregalou os olhos quando soube que aqui fica a segunda maior fábrica da Volkswagen. Isso me levou a elaborar melhor o assunto:

“Veja, São Paulo é o maior polo industrial da América Latina. Os brasileiros se orgulham disso. Gostamos de nos gabar da indústria automobilística brasileira. Aqui no Brasil, não só em São Paulo, temos a Volkswagen, a General Motors, a Ford, a Fiat, a Toyota, a Citroën, a Renault, e agora a Hyundai está começando a fabricar aqui.”

Então reparei na sua expressão sorridente, curiosa, como quem aguarda o fim uma piada interessante, sobrancelhas levantadas em suspense. Após algum silêncio, ela percebeu que eu não estava preparando uma piada. Com cara espantada, ela ficou séria e perguntou:

“Mas os brasileiros não sabem que a Volkswagen é alemã?”

“Saber, sabem. Mas toda a indústria automobilística brasileira é assim. A General Motors, por exemplo, faz parte da indústria brasileira, assim como a Fiat, que é italiana...”

A incredulidade inicial transformara-se numa expressão de espanto crescente.

“E as brasileiras?”

“Essas não existem.”

Ela fez uma pausa e explicou:

“Isso que você me falou é muito estranho. Na Europa, ninguém pensaria assim. Cada país tem suas indústrias. A General Motors, por exemplo, tem fábricas e opera na Alemanha, mas, para qualquer alemão, ou francês, ou europeu, é claro que é uma indústria americana operando no nosso país, não uma indústria alemã.”

E completou com firmeza: “A Volkswagen, sim, essa é alemã!” (parecia subentender que “não é brasileira, como vocês pensam”, mas não pronunciou tal frase).

Quando terminou o café, olhamos em volta para ter certeza de que o rapaz desistira de segui-la até o banco e despedimo-nos. Ela agradeceu profusamente a nossa acolhida, conselhos, e ainda:

“...e muito obrigada, obrigada mesmo por explicar o modo de pensamento do brasileiro. Eu nunca iria imaginar!”

Foi-se e não a vimos mais.


  • Juscelino Kubitscheck atraiu o investimento estrangeiro para o Brasil, oferecendo crédito, vantagens, isenções, financiamentos, para realizar seu sonho de “cinquenta anos em cinco”, com base na indústria automobilística e na construção de Brasília. Deu tudo o que lhe pediram. Baixou uma portaria que praticamente inviabilizava o carro popular ideal para um país pobre como o Brasil, com uma população que constituía um grande potencial de base de desenvolvimento industrial: fechou a linha de montagem do Romi-Isetta, que já estava em produção desde antes de ele negociar a ampliação do investimento estrangeiro no Brasil. Quem o fabricava eram as indústrias Romi na década de 50. 
  • O Isetta fora um sucesso em muitos países da Europa. Carro pequeno, barato e popular, para duas pessoas e uma porta frontal apenas. A portaria baixada pelo Governo brasileiro exigia que carro, para ser carro no Brasil, tinha de ter duas portas e lugar para quatro pessoas. O Romi-Isetta parecia o carro que hoje se está desenvolvendo como modelo do veículo urbano do futuro. Já em produção,  foi desconsiderado como carro, não teve qualquer incentivo e isenções como as montadoras estrangeiras, e por isso custava mais do que o dobro do que poderia custar, e ainda passou a ser ilegal. O primeiro carro que consta oficialmente como brasileiro  foi o DKW-Vemag e o primeiro popular foi o Fusca. O Isetta foi apagado da história oficial. Corria o boato, não sei se verdadeiro, que a Volkswagen havia exigido essa legislação do Juscelino como condição para investir no Brasil.
  • Nessa época, nós sabíamos que os japoneses só conseguem fabricar imitações baratas de quinquilharias, nem conta como país industrializado.
  • Até décadas mais tarde, a Coréia era um país atrasado, mais pobre do que o Brasil.
  • Mais tarde, a Gurgel fechou depois de anos de tentativas do seu fundador. Havia o projeto, havia o carro e o jipe, e havia as dívidas. Não teve sequer uma parcela do apoio que as montadores estrangeiras tinham tido.
  • Ricardo Machado criou o Óbvio!, um carro popular destinado a ser um sucesso. Nada feito. Não só faltou-lhe apoio oficial, como nos meios industriais já se sabia que isso era uma besteira dele, que brasileiro não leva jeito mesmo para indústria automobilística e que ele é um sonhador. O projeto só não faliu porque foi comprado recentemente pela Capadoccia Investments do Reino Unido, que vai usar a indústria para exportar para todos os países em desenvolvimento (e remeter os lucros para a Matriz, é claro – e isso é legal e ético da parte deles, não há o que se discutir).
  • A Capadoccia Investments também está comprando indústrias de caminhões e ônibus desenvolvidas no Brasil, como a Tutto (Caxias do Sul) e a HS de Caxias do Sul (que desenvolveu uma tecnologia de motor a gás de etanol, vejam só!).
  • Grandes conglomerados internacionais estão investindo na compra de usinas de etanol e de produção de açúcar.
  • Grandes empresas e empresários estão comprando não apenas plantações de cana, mas grandes extensões de terra. Para os japoneses, trata-se de uma política nacional (deles) de expansão de suas fronteiras agrícolas.
  • O Governo mudou a regulação do sistema e botou dinheiro do BNDES (juros baixinhos, que o Governo toma a juros altíssimos) a fim de viabilizar uma super tele brasileira, a Oi. Uma vez viabilizada, ela agora está vai-não-vai para os espanhóis, só que o Governo português, que é nacionalista apesar de europeu, não quer. O Brasil não tem mais muito a ver com isso. Já foi vendido. O Brasil não é nacionalista atrasado, como os europeus e os americanos sempre foram.
Quem dá mais? quem dá mais? qual o telefone do lobista que consegue tudo isso?

O País está à venda. É para essas “atividades produtivas” que vai boa parte dos dólares que enriquecem nossas reservas, que, por sua vez, servem para garantir o pagamento dos dólares que nos emprestam ou remetem, que, por sua vez... ah, deixa prá lá.


PMA, agosto 2010

Um comentário:

Silvia disse...

Pergentino,

Fico deprimida quando vejo o que se faz aqui. Continuamos no velho modelo exportador de matéria prima, vendemos nossas indústrias. E ainda dizem que somos o país do futuro. Que futuro?